domingo, 30 de janeiro de 2011

Recepção italiana

            Um mês atrás começamos os preparativos para nossa viagem à Itália. Escolhemos Roma e Veneza e reservamos pela internet os hotéis e as passagens mais baratas que apareceram. Sábado, embarcamos pelo aeroporto de Beauvais só com uma mochila cada um, pois a nossa passagem de 15 euros não previa envio de bagagem. Já no avião começamos a entrar no espírito italiano quando a aeromoça chefe apresentou a comissão de bordo: Betina, Albertina, Martina.
          Que voo barulhento esse da Ryanair! Um bebê chorando, um velho rabugento reclamando o tempo todo do bambino e as aeromoças que não pararam um segundo de vender coisas: comida, cartão de celular, cigarro, cosméticos, jogo de bingo... Uma hora e meia de algazarra e chegamos a Ciampino, a uns 30 quilômetros de Roma, anunciado no avião com um toque de corneta: sobrevivemos. Logo na saída do aeroporto, pegamos uma discussão em voz alta e baixo nível entre uma senhora e três homens, repletas daqueles palavrões italianos que nós bem conhecemos, e nos sentimos felizes por estarmos em Roma. Depois, vimos uma mulher fazendo sinal e gritando: rápido, rápido que o ônibus vai sair. Era o transporte que nos levaria até o centro da cidade. Sabe quando na França alguém vai ficar te chamando porque o ônibus vai sair?...
         Chegamos à estação Termini, onde se cruzam as linhas de metrô da cidade e também de onde partem todos os trens para os arredores. E nós, só com o endereço do hotel, que ficava a uns 10 quilômetros ao sudeste dessa estação. Nossa sorte é que os italianos, diferente dos franceses, adoram dar informação; tem uns que além da informação te acompanham até o lugar onde você precisa chegar. Foi uma dessas almas que nos indicou o trenino, uma espécie de metrô medieval cheio de gente se estapeando amigavelmente. Ele andava tão devagar que eu achei que não chegaria nunca. E já fiquei preocupada: se tivermos que pegar sempre esse trem pra chegar até o centro, vamos perder umas duas horas por dia. Desembarcamos do trenzinho e, depois de mais umas informações, encontramos o hotel. Imaginem a seguinte cena: um hotel na beira de uma rodovia, tendo do lado direito um terreno baldio, do lado esquerdo um circo e na frente um boteco decorado com luzes vermelhas. Chegamos mortos de cansados, mas o recepcionista, todo atrapalhado, ainda demorou pra achar nossa reserva. Pra nossa tranquilidade, o quarto era grande e o banheiro e a cama impecáveis.
              Depois de um banho quente, mesmo exaustos, resolvemos aproveitar o resto do dia. Voltamos a recepção. O italiano fez cara feia quando perguntamos se tinha um modo mais rápido de chegarmos até Roma sem ter que usar aquele trenino. Vocês estão a pé? Precisam de transporte público? Depois de resmungar italianamente, ele nos indicou um ônibus que passa em frente ao hotel, linha 558; disse para pararmos na estação Subaugusta e pegarmos o metrô até a estação Termini.  Quisemos também saber se era perigoso andar à noite por aquela região desértica com palhaços assassinos – It! – na vizinhança. Ma! Então ele tinha que ouvir os brasileiros achando que na Itália é que tinha assalto...
Os italianos são muito engraçados e a grossura deles não nos faz mal como a dos franceses. É uma grossura espontânea e familiar, por isso não consegui ficar chateada com ele. Depois de agradecermos pela informação, testamos a sua dica e, em 40 minutos, estávamos novamente no centro de Roma. Assim, terminamos o sábado sentados em frente à Fontana di Trevi. Che dolce vita!
          No segundo dia, acordamos muito cedo, tomamos café no hotel e saímos com o 558, que passa a cada 20 minutos. Fomos ao Fórum Romano, ao Circo Massimo e ao Museo del Risorgimento, que fica dentro do monumento a Vittorio Emanuele. Mas antes, no Coliseu, a peculiar receptividade italiana deu suas provas novamente: fomos perguntar em italiano, para uma funcionária, onde era a entrada do Fórum Romano, e ela, querendo ajudar: Quale lingua?
Diante da pergunta inusitada, pensei: a guardinha é poliglota. Então respondi:
-       Português.
-       ...
-       Francês.
-       ...
-       Inglês.
-       ...
-       Espanhol.
-       ...
-       Italiano.
-       Va bene. Siga reto por aquela rua e na próxima você pega a esquerda.
     Que língua será que ela fala além de italiano? Tcheco?
Voltando pra casa vimos outra discussão, agora de um casal. Ela andava uns metros a pé xingando a mãe dele. Ele, de carro atrás dela, parava a cada dois metros e abria a porta pra ela entrar. Ela, então, dizia que nunca mais ia falar com ele. Ele, gesticulando muito, implorava: Amore, andiamo. Depois de o carro andar e parar umas seis vezes, ela resolveu entrar, fechando a porta com uma pancada.
Para nós, tudo era divertido. Até porque, por enquanto, não éramos nós que estávamos envolvidos naquela confusão nacional. O que era só uma questão de tempo.









domingo, 16 de janeiro de 2011

Tratamento armênio

          Sexta-feira, estação do metrô lotada de gente apressada. Eu e uma amiga caminhávamos sem nos importar com o empurra-empurra. Estávamos indo para a última aula de phonétique do semestre, felizes da vida. Eu olhava distraída uns cartazes de filme, quando sinto uma coisa roçando a minha perna. Um segundo depois, tive a nítida impressão de que era uma coisa peluda e grande, pois ela encostava também na minha mão. Foi a hora do salto. Voei pra cima da minha colega, que teve que se escorar na parede pra não cair. Hesitei uns segundos a olhar pra frente, mas como não podia ficar ali minha vida toda, resolvi encarar a realidade. Era um cão. Enorme! Seguido por seu dono de cabelos espetados, com fones nos ouvidos, que nem percebeu o que tinha acontecido.   
           Um cara que vinha atrás de nós não disfarçou: passou ao nosso lado, me olhou e soltou uma gargalhada. Eu olhei pra ele com cara de: O que foi idiota? Garanto que quando você vê uma aranha solta aquele gritinho fino e abana as mãos histericamente na altura do peito!
            Ignorei o abestalhado e, vendo que o dócil cãozinho não era nenhum monstro de sete cabeças e que mais animal era o seu dono, que nem se dava o trabalho de desviar das pessoas, continuamos nosso caminho, quando de repente fui privada da minha visão por um balde d’água na cara. Eu estava subindo as escadas em direção às roletas e quase me desequilibrei com a intensidade do jato. Enquanto eu secava a água dos olhos com o casaco e tirava o cabelo escorrido da cara com uma mão, com a outra eu tinha que sacar o cartão do bolso e passar a roleta do metrô antes que a multidão me pisoteasse.
Depois de muita dificuldade e sem saber se a roleta era roleta mesmo ou se era algum portal que me levaria dessa para uma pior, consegui chegar ao outro lado. Pra meu alívio, eu não estava no inferno, a não ser que o cachorro e a minha colega armênia tivessem vindo junto comigo. Desisti dessa segunda hipótese quando vi o trem parado e com as portas abertas: não deve ter essas praticidades no submundo. Na dúvida, deixei minha amiga entrar primeiro. Quando botei o pé pra dentro do trem, vi a big pata do animal a menos de um metro de mim. Recuei, corri uns metros e entrei no outro vagão. Minha amiga, que já estava sentada, levantou e veio atrás de mim, e por pouco não foi prensada na porta que já havia dado o sinal de que iria fechar. Eu me joguei no banco e fiquei tentando entender o que tinha acontecido. De onde tinha vindo toda aquela água? Tirei minhas luvas da bolsa e terminei de me secar, enquanto todo o trem me olhava, inclusive minha amiga, que se sentou no banco da frente. Depois de um longo silencio, ela me perguntou: Passou o susto? Eu balancei a cabeça positivamente, mesmo sem entender nada. Foi então que veio a revelação: Desculpa ter te molhado, mas é que, na Armênia, sempre jogamos água quando uma pessoa leva um susto, pra evitar que ela fique com transtornos mentais...
       Hã?
      Olhei pra ela com uma vontade absurda de pegá-la pelo pescoço e arremessá-la pela janela do trem. Quando estava criando forças, ela tirou a garrafa de um litro da bolsa e me disse sorrindo: Agora não tenho mais água pra tomar durante o dia, mas estou feliz por ter te ajudado.
         Levantei do banco e fui em direção a ela. Calma, eu não matei ninguém! Pelo contrário; eu a abracei, tirei a minha garrafa d’água da bolsa e dei para ela beber. Afinal, graças a seu instinto rápido e sua crença, eu não voltarei para o Brasil com um parafuso a menos.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Alice au Pays de Burton

          Chega uma hora em que a festa acaba e a rotina bate à porta, o que não quer dizer que os dias se tornem monótonos. Estava indo hoje para a Sorbonne e, como de costume, quando entrei na estação do metrô, fui em direção à caixa de jornais que são distribuídos gratuitamente. Geralmente, intercalo entre o Direct Matin e o Direct Soir, mas hoje resolvi pegar o A Nous Paris, pois vi Sofia Coppola na capa. Entrei no trem, abri o jornal e, de cara, recebi um convite irrecusável: Une nuit avec les Coppola, sessão de cinema com filmes da família Coppola que começará à meia-noite do próximo sábado e terminará com café da manhã no domingo. Podemos escolher três filmes para ver durante a madrugada. As opções: Encontros e Desencontros, Maria Antonieta, Uma Segunda Juventude, As Virgens Suicidas, Tetro e Drácula. Já temos programa para o fim-de-semana. Os jornais franceses são forrados de reportagens sobre filmes, peças de teatro, música, literatura, museus, dança. Claro que eles têm propaganda também, mas elas só representam 5% do jornal e não 80% como muitos jornais que conheço por aí...
            Depois de terminar de ler uma reportagem de duas páginas sobre Patti Smith, chego à minha estação: Luxembourg. Pois é, eu sou obrigada a passar todos os dias na frente do Jardim do Luxemburgo para chegar até a escola. Prometo não reclamar mais da minha rotina. Quando vou fechar o jornal pra guardar na pasta, o que vejo na contracapa? O coelho apressado! Sim, o coelho do Lewis Carroll, aquele perseguido pela Alice, vestido de Edward Mãos-de-Tesoura. Foi paixão à primeira vista. Nem guardei mais o jornal: cheguei na sala de aula e deixei exposto na minha mesa. Foi quando, para meu desespero, minha colega polonesa, que senta ao meu lado, pegou a caneta e veio reto na pata do coelho. – Nããããoo! O que você vai fazer? eu perguntei assustada, protegendo o meu coelho da violência da sua arte. Vou desenhar alguma coisa, disse entre dentes minha colega, com o braço paralisado. Então, antes que ela sofresse um ataque epilético e investisse com a caneta contra o meu coração, virei algumas páginas e disse: desenhe aqui!, apontando para uma página de shows flash-back disco-punk que não me interessavam.
            Acho que ela se assustou um pouco com a minha reação, pois desenhou um coraçãozinho de meio centímetro, querendo me dizer: desculpa, eu não queria desfigurar o teu coelho. Eu sorri pra ela e fingindo não me importar mais com o jornal, enfiei na bolsa. Imagina, eu chegaria em casa e a primeira coisa que iria fazer seria tirar uma foto do coelho estilizado pra mandar pra Deise, que adora tanto quanto eu o mundo maravilhoso do Lewis Carroll e também do Tim Burton. Quando acabou a aula, eu e Monika, a polonesa, fomos em direção à estação do metrô. No meio do caminho ela me cutuca e diz com desprezo, apontando para uma parada de ônibus: “Voilà, ton lapin”. Meus olhos brilharam: era um cartaz gigante do mesmo coelho. Depois de alguma insistência, pois minha amiga não queria pagar mico no meio da rua, ela finalmente bateu a foto pra mim.
          Voilà, mon Lapin!

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Buttes des Chaumont

           Domingo foi o dia de o Douglas olhar o mapa e escolher um lugar para irmos. Como parou de nevar, a temperatura estava positiva e o sol resolveu aparecer, ele escolheu o Parc Buttes des Chaumont, no nordeste de Paris.








segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Virada

          Resolvemos passar a virada de ano às margens do Sena, num lugar que desse pra ver a torre e os fogos de artifício. Preparei nossa ceia de ano novo, jantamos e já tomamos a champagne, pois no site de Paris dizia que haveria guardas barrando a entrada de pessoas com garrafas nas redondezas dos pontos turísticos. Nos últimos anos, muita gente se machucou por causa dos vândalos que quebram garrafa só pra escutar o barulho. Saímos de casa às 11 horas. Todo o transporte público de Paris, do dia 31 às 5 da tarde até o dia 1º de janeiro ao meio-dia era de graça, então já prevíamos bastante gente.
         Sugeri ao Doug pararmos com o RER B na Notre-Dame e caminhar pelo Sena a pé até avistar a torre, pois a linha 6, que dá direto nela, deveria estar atrolhada de gente. Dentro do trem, já vimos que a noite seria agitada: as pessoas estavam gritando histericamente. Quando descemos na Notre-Dame já era 11:20. Pegamos a Rive Gauche e seguimos por ela. Passamos a Pont Neuf, a Pont des Arts, a Pont du Carrousel. Comecei a ficar preocupada com a hora: Que horas são, Doug?  
           - 11:40. Será que vai dar tempo?
           - Vai sim, só vamos apressar um pouco o passo. Apertamos as mãos e começamos a ultrapassar as pessoas que pareciam sem pressa alguma. Aliás, que gente esquisita! Enquanto corríamos para não perder a virada na torre, não pude deixar de reparar em algumas coisas bizarras, como uma senhora com casaco de pele e na cabeça orelhas de coelho iluminadas, duas moças com chapéu de aniversário de criança e gente berrando. Nossa, como berravam! Eu achei que isso era coisa de carnaval na colônia; nunca pensei que fosse ver isso em Paris. Enfim, enquanto analisávamos os modelitos nada fashion, passamos a Pont Royal, o Musée d’Orsay, a Pont de la Concorde. O Douglas olha para o outro lado do rio, vê a roda gigante e fica preocupado:
           - Aquela não é a roda gigante que está no final da Champs Élysées? Tem certeza de que estamos no caminho certo?
           - Sim, amor, olha lá o Grand Palais. Pertinho tem a Pont Alexandre III; de lá a gente já consegue ver a torre. Que horas são?
           - 11:45.
           Quando íamos atravessar mais uma avenida, o sinal fechou. E como demoram para abrir os sinais de pedestre aqui em Paris. Nessa noite, parece que demorou mais ainda. Quando abriu, seguimos correndo pelas margens do Sena: tínhamos que chegar até a torre. Afinal eu tinha dado aquela ideia de parar tão longe, e agora precisávamos correr para chegar a tempo. Passamos pela Assembleia Nacional e chegamos à Pont Alexandre III, a mais linda de todas. Desse ponto, realmente dava pra ver a torre, mas resolvemos chegar mais perto dela. Caminhamos mais uns minutos e paramos na Pont de l’Alma. O Doug olhou pro relógio e disse que já era meia-noite.
           -  O teu relógio deve estar adiantado.
           A torre estava só com a iluminação de costume. Muitas pessoas por ali, mas nenhum sinal de contagem regressiva. Esperamos mais uns minutos e...
           - Olha, a torre está piscando!
           - Oba, vou filmar agora pra não perder a virada.
           Terminei o vídeo e nos abraçamos. Não importava se já era meia-noite. Estávamos em Paris!  Depois de longos abraços, olhamos para a torre, e ela já tinha voltado ao normal.
           Enquanto esperávamos os fogos e a contagem regressiva, resolvemos andar mais um pouco e chegar mais perto. Só que, nisso, nos deparamos com uma multidão caminhando e gritando em direção ao metrô. Então chegamos à conclusão de que não haveria fogos nem contagem regressiva. Nosso abraço tinha sido na hora certa, porque 2011 já tinha começado. Demos meia volta e marchamos com o povo. Paramos num dos muros do Sena e ficamos olhando os barcos iluminados passando. Meia-noite e dez, pra nossa surpresa, vimos três fogos de artifício. Três! Meu pai sozinho, armado de uma garrafa pet com cal dentro faz mais barulho que toda essa gente.  
         Meia-noite e meia resolvemos ir para casa e tomar a sobra da champagne. Rindo, é claro, da nossa maratona de quilômetros para ver a torre piscando por três minutos, dos franceses que usam enfeites natalinos no réveillon, da falta de fogos que faz com que as pessoas gritem mais alto ainda, mas felizes, por estarmos em Paris, por nos darmos tão bem e também por ter descoberto que o réveillon no litoral gaúcho não é tão mau assim.