domingo, 13 de março de 2011

Madeleines de Proust

Essa semana, numa das aulas de francês, a professora falou sobre a “Madeleine de Proust”, que é uma expressão utilizada para algo que nos faz viajar pela memória até o passado. A expressão tem esse nome por causa da obra de Marcel Proust À procura do tempo perdido, em que o narrador, numa das histórias, quando comia madeleines, voltava todo o pensamento para a infância.
           Todo mundo tem suas madeleines de Proust, sejam imagens, sabores ou gestos. Uma das minhas madeleines é o cheiro de bolinho de chuva que a minha mãe fazia nas tardes de inverno da minha infância, aquelas tardes em que o tempo estava tão ruim que era impossível sair de casa pra brincar na rua com os vizinhos. Ainda hoje eu lembro desse cheiro, principalmente quando chove e eu estou dentro de casa. O cheiro da chuva me faz lembrar do cheiro do bolinho e, aí sim, todas as lembranças de infância começam a aparecer na minha cabeça.
           Eu sempre tive mania de cheirar (fiquem tranquilos, nunca cheirei nada ilícito). Tudo começou com o miolo de pão. Minha mãe sempre dizia que era falta de educação, mas fazer o quê? Depois do pão eu passei a cheirar tudo que é comida. Tem umas até que gosto mais do cheiro do que do gosto. No colégio o vício ficou mais grave: comecei a cheirar o giz de cera, a tinta guache e a caneta destaca texto. Na adolescência, o cheiro de livro novo é que me fascinava. Toda vez que entrava numa livraria, eu olhava pros lados pra me certificar que ninguém estava olhando, abria um livro e me deliciava com o seu aroma. Também nessa época eu era viciada em furungar disco de vinil. Antes mesmo de escutá-lo ou de desvendar todos os detalhes daquela capa enorme, eu tirava o vinil do plástico, trazia ele pra perto do nariz e o cheirava. Na fase adulta eu comecei a apreciar o cheiro dos lugares também. Acho que é por isso que eu sou uma das poucas pessoas na face da terra que gosta de ir ao dentista.
          Aqui em Paris eu descobri cheiros novos. Cada quartier pra mim tem um cheiro diferente. As incontáveis lojas de perfume da Champs Elysées dão à avenida mais famosa do mundo um cheiro de sofisticação e finesse. O Quartier Latin tem cheiro de boemia e intelectualidade: uma mistura de cheiro de café com cheiro de livro usado dos sebos.
          Ontem o dia foi repleto de odores, a maioria não muito agradável. Começamos a sentir um deles no metrô: um cheiro de gente que não toma banho há pelo menos uma semana. Quando eu sinto esse cheiro, vou de uma estação a outra sem respirar. Quando a porta do trem abre, e o ar se renova, eu dou aquela respirada fundo pra poder aguentar até a próxima vez que a porta vai abrir. Ontem as previsões estavam marcando chuva, o tempo estava pesado e nunca senti o metrô tão fedido. Estávamos indo para a Maison de Balzac e só pude respirar tranquilamente quando botei meu nariz pra fora do subterrâneo. Chegando na casa do Balzac, além dos objetos do escritor, tinha uma exposição sobre Théophile Gautier e, acreditem se quiserem: um cheiro muito forte e ácido dentro da casa. Vamos lá, eu já estou craque em ficar minutos inteiros sem respirar. Lendo uma das cartas que estavam expostas na parede, onde George Sand contava que Gautier tinha tantos gatos que, quando ela ia visitá-lo, podia sentir o cheiro de xixi de gato ainda na calçada em frente à casa, percebi como os franceses são perfeccionistas: montaram uma exposição do Gautier na casa do Balzac e reproduziram até o cheiro.
           Quando saímos da Maison de Balzac, ficamos caminhando pelas bordas do Sena. Estávamos matando tempo, pois, para o nosso próximo compromisso, um espetáculo de dança contemporânea, faltava ainda três horas. Chegando perto da Pont d’Iéna, avistamos um indivíduo virado para a parede fazendo suas necessidades líquidas ali mesmo. Para evitar um constrangimento mútuo, fiquei olhando para o lado oposto ao sujeito, e seguimos por baixo da ponte. Só que, no meio dela, vimos que o que o homem estava fazendo devia ser prática comum entre os transeuntes, pois a ponte fedia a ácido úrico. Trancamos novamente as narinas e fomos pulando amarelinha para desviar das poças amarelinhas no chão. Resolvemos então não passar mais por baixo das pontes e pegamos à esquerda antes da Pont d’Alma e seguimos em direção ao metrô, onde fomos atacados novamente pelo fartum.
            Não é possível, os fedores estão nos perseguindo! Comecei a achar que o meu nariz é que estava estragado, mas me tranquilizei quando olhei pro Doug e vi que ele também estava com a mão no nariz, lutando contra o mau cheiro do lugar.
           Finalmente chegamos ao Théâtre de L’étoile du Nord. Corri para o banheiro, lavei as mãos com muito sabonete líquido e fiquei cheirando-as pra ver se esquecia dos cheiros anteriores. Quando já tínhamos nos posicionado na plateia, vimos que éramos os mais novos por ali. A pessoa mais próxima a nós em idade provavelmente tinha assistido à Liberação de Paris em 1944. Alguns cheiravam a talco, mas tinha uma senhora que estava no banco da frente que certamente foi esquecida de ser enterrada. Pelo cheiro que ela exalava, eu calculei que ela estava morta há pelo menos três dias. O pior de tudo é que a técnica de trancar a respiração até uma possível renovação do ar não funcionaria ali. Eu ainda não consigo ficar uma hora e meia sem respirar. Então lembrei que eu estava de gola alta. Puxei a gola em direção ao nariz e fiquei o espetáculo inteiro parecendo uma bandida do velho oeste tentando filtrar o ar fétido.
           Uma hora e dez minutos depois, saímos da sala de tortura olfativa. tinha chovido, o ar estava mais leve e o cheiro ruim tinha desaparecido. Quase chegando ao metrô, um outro cheiro bateu nos nossos narizes, mas dessa vez um cheiro bom. Pâtisserie!, gritei gulosa. Não resistimos à tentação, compramos umas coisas cheirosas e fomos pra casa comê-las com café. Mas antes, dei uma boa cheirada no pó do café: um ótimo meio de apagar a lembrança dos maus odores do dia. Como uma madeleine de Proust às avessas.






5 comentários:

  1. Concordo com tudo. Os melhores cheiros são de livro novo (de arte melhor ainda, cheio de imagens), livro bem antigo também. Tinta. Café. Comidas, temperos, frutas, doces.

    Embora nunca use, laquê tem um cheiro que me leva pra todos os camarins, e todas as sensações que vem junto, antes do palco, porque as colegas usavam. Cheiro de gelo seco, que lembra palco.

    Tenho uma gata que sempre tem um cheiro de flor.

    Odeio fumaça de cigarro, mas adoro muitas pessoas que fumam. Incrível como às vezes um cheiro ruim pode trazer uma memória boa, de um bom momento ou uma pessoa.

    Adorei o texto!
    Abraços

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  2. E viva o cheiro de grama molhada, o cheiro de bolinho de chuva, o cheiro do vento de final de tarde... os cheiros da infância e os cheiros de juventude. Mas, sobretudo, o cheiro do presente, que nos dá presentes maravilhosos, todos os dias!!
    bjs Rê

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  3. Lembro do cheiro das folhas recém passadas nos antigos "mimiógrafos" (acho que é isso). Aquele cheiro de álcool era inconfundível.

    E nada melhor do que um cheiro de chuva de verão para dormir, refrescando o ar e subindo aquele cheiro de terra molhada.

    Abraços

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  4. Cheiros....cheiro de café,de livro antigo,pipoca(este não tem como esconder, kkkk)adorei o texto.

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  5. Cheiro de terra molhada pela chuva é infância pura.

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